quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Conjunto Habitacional do Pedregulho

Fonte: http://www.jornaldacidade.net/2008/noticia.php?id=38624

Sobre as ondas


Publicada: 02/08/2009


Abandonado pelo poder público mas cada vez mais visitado por arquitetos e urbanistas do mundo todo, o Pedregulho ainda é um exemplo de habitação popular no centenário de seu criador, Affonso Eduardo Reidy.

O Conjunto Habitacional Pedregulho, no bairro de São Cristóvão, é uma onda. O formato sinuoso de seu principal prédio e outros equipamentos urbanos ao redor atraem centenas de arquitetos e urbanistas do mundo inteiro, que saem com a sensação de terem visto uma obra de arte. Tanta visitação tem aumentado à medida que se aproxima o centenário de nascimento do franco-brasileiro Affonso Eduardo Reidy, nascido em Paris em 26 de outubro de 1909 e responsável pela concepção do projeto. O alvoroço em torno do trabalho mais renomado internacionalmente de Reidy enche de orgulho os moradores do lugar, que só não entendem por que o Pedregulho foi tão esquecido pelo poder público.

—- Você não imagina o quanto de estrangeiro que entra na nossa casa. E fotografa daqui, fotografa dali — acha graça Beatriz Bóboda, de 78 anos, há 40 num dúplex de dois quartos do prédio principal do conjunto.

A variedade dos 272 apartamentos da edificação curva impressiona: há quitinete, quarto-e-sala e dúplex com dois, três e até quatro quartos, de 29 a 80 metros quadrados. A arquitetura de Reidy traz aqui um ensinamento bem atual em relação à moradia popular. Diferentemente das unidades habitacionais do Projeto de Aceleração do Crescimento (PAC), que por razões orçamentárias têm no máximo 41 metros quadrados, no caso do Pedregulho foram previstos a diferença de tamanho das famílias brasileiras e o seu crescimento.
O edifício sobre os pilotis no alto do Morro do Pedregulho oferece uma vista incrível da cidade.
Dali, veem-se a Igreja da Penha, um pedaço da Baía de Guanabara e da Ponte Rio-Niterói, um pôr do sol espetacular e como o Complexo do Alemão é enorme e a Favela do Tuiuti se expande rumo ao Pedregulho, mas isso a prefeitura parece que não vê.

Seria muito injusto não enxergar que Reidy não bolou o Conjunto do Pedregulho sozinho. Ele teve como musa inspiradora Carmen Portinho, a primeira urbanista do país. Praticamente todas as ideias ali contidas foram trazidas por ela, após uma viagem à Inglaterra, com bolsa de estudos do Conselho Britânico, para acompanhar a reconstrução de cidades bombardeadas no pós-guerra, em 1945. À época, ela percebeu que os novos conjuntos habitacionais de metrópoles como Londres e Liverpool não se limitavam a residências em série, desconexas entre si, imagem comum aos conjuntos do Brasil erguidos a partir de 1964, com a criação do Banco Nacional de Habitação (BNH). Nada disso. Ao seu redor, os ingleses tinham escola, postos de saúde, mercados, centros esportivos e acolhedores espaços de convivência.

Carmen relata em seu livro de memórias, “Por toda a minha vida”, em depoimento dado a Geraldo Andrade, sua experiência britânica: “Aprendi muita coisa com os ingleses, não só na parte de urbanismo, mas igualmente a solidariedade, a parte social que, infelizmente, no Brasil é desprezada, mas que lá era fundamental; todo mundo só pensava em construir para o soldado, para a família que vinha de fora, porque o país estava semidestruído.” Carmen já era então companheira de Reidy, embora os dois nunca tivessem se casado oficialmente, deixando de lado os moldes rígidos daquele tempo. Logo após a viagem, ela passou a ser a diretora do Departamento de Habitação Popular (DHP) do Rio, então Distrito Federal, e chefe do seu namorado, já então funcionário da Prefeitura do Rio.

Os traços de Reidy seguiram à risca as determinações dela. Em 1950, foi inaugurado — embora incompleto — o Conjunto Habitacional Prefeito Mendes de Moraes, nome oficial do Pedregulho.

Ele nascia ainda sem o prédio principal e com escola, ginásio esportivo coberto, piscina semiolímpica, vestiários, posto de saúde, mercado, lavanderia coletiva e dois blocos menores, com 28 apartamentos dúplex cada, de dois, três e quatro quartos. O prédio maior, aquele em forma de onda, só ficaria pronto em 1960, ano em que a capital federal se transferiu para Brasília, e o Pedregulho ficou à míngua.

O paisagismo de Burle Marx, que fez um painel numa sala da escola, mais um painel de azulejos de Portinari na parte externa do ginásio e outros de Anísio Medeiros realçavam as instalações. Os três artistas nada cobraram pelo trabalho. Em 1953, o projeto ganhou o principal prêmio da Bienal Internacional de São Paulo.
Arquiteto do PAC dos complexos do Alemão e de Manguinhos, o argentino Jorge Jauregui é enfático nos elogios e na indignação pelo abandono do Pedregulho.

— Inspirado no arquiteto franco-suíço Le Corbusier, o Pedregulho de Reidy é uma das mais altas realizações da arquitetura de conteúdo social da América Latina — diz. — É prioritário que esse grupo de edificações seja recuperado, para continuar servindo de exemplo do que é possível fazer em termos de moradia. Nele, há todos os equipamentos necessários para a evolução de uma vida social interativa.

Jorge dá um exemplo mais específico da qualidade arquitetônica. Para ele, o desenho ondulante do edifício maior dialoga “brilhantemente” com o desenho curvo do teto e com as rampas da escola. A arquiteta Helga Santos, moradora do Pedregulho por pura paixão, capta outro ângulo do conjunto.

— Olha só a interação da curva que emoldura o painel do Portinari com o edifício principal ao fundo — aponta.

Helga caminha ao mesmo tempo em que emprega termos arquitetônicos incompreensíveis a um leigo. Ventilação cruzada? Ela ri:
— O prédio com ondulação tem um imenso corredor onde se pisa logo que se sai de casa. E esse corredor (de 200 metros), que parece varanda, é margeado por cobogós (elementos vazados), que deixam o vento passar e filtram a luminosidade. Basta que se abram a porta de entrada e a janela da sala para que o vento corra por toda a casa — diz Helga, que reside num dúplex de quatro quartos, num dos blocos abaixo do prédio mais famoso.

Abrir as portas das casas nesse corredor é algo que todo mundo ali faz. Crianças com patins, patinetes e bolas, vizinhos em conversas animadas e pedidos de açúcar e café transformam a área num animado espaço de convivência.
Helga também descreve as sombras do conjunto. A arquiteta vai até o terceiro pavimento e diz que ali é o PUC, Pavimento de Uso Comum, que, em vez de remeter a um playground, sugere mais uma rua, de tão extenso e largo.
Na escola, pormenoriza a arquiteta, telas de vidro móveis separadas por ferro compõem a fachada lateral onde não bate sol. De dia entra alguma luminosidade nas cinco salas de aula; mas o calor, não.
O apuro do projeto, porém, não oculta o fato de que o Pedregulho é como um paciente respirando por aparelhos.

Em 1962, o arquiteto Le Corbusier, o grande mestre de Reidy e da arquitetura moderna, veio ao Brasil para conhecer Brasília e, a pedido de Carmen Portinho, passou pelo Rio. Ela lhe ofereceu um almoço no Museu de Arte Moderna, o MAM, outra grande obra de Reidy. Carmen contou, numa entrevista, que perguntou a Corbusier se ele queria ir até o Pedregulho. Ficou surpresa quando ele lhe disse que já tinha ido: “Assim que saí do aeroporto, pedi para me levarem lá.” Ela ficou nervosa e disse: “Estou muito envergonhada. As autoridades não reconhecem o trabalho. Não gastam nenhum tostão para conservar aquilo e o deixam sem acabamento.” Não à toa, o conjunto está virando ruína. Presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil, Dayse Góis alerta que há infiltrações e ferragem aparente no prédio principal:
— Nele, como há cobogós no corredor que não foram substituídos, há perigo de crianças caírem pelos vazios deixados. A fachada do prédio, descaracterizada, precisa de reparos urgentes. E o pior: a lavandeira coletiva não existe mais, e a edificação onde funcionava está mal conservada. Feminista, Carmen queria que as mulheres não lavassem roupa, para que se dedicassem mais ao trabalho. O mercadinho também está mal conservado e o posto de saúde, destruído.

Dayse explica que o conjunto, antes do governo federal, passou a pertencer ao governo estadual em 1978, quando a Companhia Estadual de Habitação e Obras o assumiu:
— Como ele é tombado pela prefeitura, deveria haver um entendimento entre os dois níveis de governo. Se houvesse o tombamento por parte do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), os três níveis de governo estariam envolvidos. Ao ser visitado todo ano por arquitetos do mundo todo, o Pedregulho representa o Brasil.

Superintendente do Iphan-Rio, Carlos Fernando Andrade afirma que o processo de tombamento do conjunto está na fase final, mas há um impasse:
— Do jeito que está, não se pode tombá-lo, mas é um absurdo não tombá-lo.

A questão fundiária do conjunto também é grave. Ele foi construído para funcionários públicos de baixa renda, que pagavam um aluguel baixo. Quando o prédio deixou de ser da União, restou um imenso problema.
— Algumas pessoas, por não serem donas dos imóveis, não ajudam na conservação — ressalta Dayse.

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